O envelhecimento é uma das temáticas sociais mais desafiantes dos nossos tempos. É complexa, cruzando desafios individuais, sociais e económicos. Além dos desafios pessoais e familiares, que são muitas vezes grandes e difíceis de ultrapassar, o envelhecimento tem implicações na segurança social, no mercado de trabalho, na fiscalidade e na dívida pública, no comportamento eleitoral, na coesão social, entre outros. A complexidade de todo o sistema, associada à fragilidade e à fragmentação de tantos serviços – prestados por empresas, organizações sociais e instituições públicas – deveriam, primeiro, gerar em todos nós apreensão, e depois conduzir-nos a uma ação colaborativa. Comecemos pelo primeiro, neste artigo: a apreensão.
A apreensão seria naturalmente gerada pelo medo de no nosso futuro de “velhos” não termos o amparo necessário para garantir a dignidade desejável. Mas será que a sentimos, a tal apreensão? E se a sentimos, será que ela permanece em cada um, a ponto de querer fazer algo para mudar o estado de coisas?
Os mais abastados economicamente, e conscientes dos desafios na velhice, provavelmente empenham-se todos os dias para terem o suficiente que lhes garanta essa dignidade quando forem velhos. Os mais pobres estarão a contar que a segurança social os ampare. A classe média viverá remediada e a contar dinheiro também nos seus últimos anos, esperando que ele chegue efetivamente para todas as despesas, incluindo medicação e alimentação. É muito provável que, com mais ou menos recursos, a grande maioria de nós não venha a ter, contudo, o apoio que hoje espera.
Os ricos podem ter dinheiro para pagar, mas a qualidade do serviço aos velhos é hoje aquém do desejável na área dos cuidados, seja para cuidados domiciliários, seja para cuidados em lares (privado com ou sem fins lucrativos) ou nos hospitais – falta pessoal em geral, falta pessoal qualificado e a qualidade da gestão das organizações que prestam os serviços tem muito por onde se desenvolver. Os mais pobres podem desejar o apoio da segurança social, mas esta não vai chegar para todos, nem as infraestruturas existentes – sociais e de saúde, vão chegar para todos. Basta ter estado minimamente atento às notícias durante a pandemia sobre os lares de idosos (as ERPIs, como são conhecidas) para saberem que esta é a realidade. Basta continuar atento às notícias na área da saúde no nosso país para confirmarem que a realidade é a mesma da da pandemia, senão pior.
Estão a ver onde o raciocínio necessariamente nos conduz: todos deveríamos estar apreensivos com o que nos espera e com o que será a vida dos nossos filhos, se os tivermos, ao assistirem à situação em que estaremos.
Vamos cruzar os dedos e esperar que a nossa saúde se aguente bem o mais longamente possível?
A União Europeia, produziu pela primeira vez, depois da pandemia e provavelmente por causa dela (cerca de metade das mortes por COVID 19 no primeiro ano ocorreram em lares de terceira idade), uma visão europeia para a área dos cuidados – a European Care Strategy (setembro 2022).
Neste documento afirma-se que os serviços de cuidados deveriam estar ao alcance de todos, independentemente da idade, género ou estatuto social, e que deveriam ser de elevada qualidade e centrados na pessoa, mantendo a sua autonomia e garantindo a sua dignidade, etc. Segundo o mesmo documento, a realidade na Europa, para os idosos, é que quase metade das pessoas com 65 anos ou mais com necessidades de cuidados de longo prazo não têm o apoio necessário para cuidados pessoais e da sua casa. Em 2050 estima-se que 38,1 milhões de pessoas precisarão de cuidados de longo prazo, mais 23,5% do que em 2019.
Portanto, já hoje, metade dos europeus com 65 e mais anos não têm o apoio de que necessitam.
Porquê? Além da falta de informação, o que falta, efetivamente é cuidadores habilitados e a custos que as pessoas consigam suportar, quer a opção seja o cuidado domiciliário, quer seja em lar residencial. Faltam trabalhadores que queiram ter esta profissão. E se existem, nem todos são qualificados, técnica e humanamente.
"Além da falta de informação, o que falta, efetivamente é cuidadores habilitados e a custos que as pessoas consigam suportar, quer a opção seja o cuidado domiciliário, quer seja em lar residencial."
O documento europeu que já referi explica que é necessário facilitar aos potenciais cuidadores acesso ao mercado de trabalho e criar efetivamente mais emprego no setor. Mais de 9,1 milhões de pessoas, sobretudo mulheres, trabalham formalmente na UE no setor dos cuidados, tipicamente com baixos salários e parcas condições de trabalho, o que dificulta a retenção e a atração de novos trabalhadores.
Onde está quem quer trabalhar num setor tão exigente quanto o dos cuidados? Onde está a formação de que essas pessoas precisam para efetivamente poderem prestar serviços de qualidade? O que é um salário digno? Quanto estamos dispostos, como sociedade, a investir nisto?
Muitos dos cerca de 52 milhões de europeus que prestam cuidados informais de longo prazo não são capazes de participar de forma integral no mercado de trabalho, diminuindo as receitas públicas e aumentando a falta de pessoas no mercado de trabalho. Em 2019 os estados-membros gastaram uma média de 1,7% do PIB em cuidados de longo prazo, tendo a OIT estimado que um aumento para 1,9% resultaria na criação de 13,6 milhões de empregos adicionais.
Onde estão as políticas das empresas e de outras organizações para apoiarem os seus trabalhadores que são cuidadores informais, porque as famílias não têm alternativas? Onde estão as políticas públicas para um investimento credível no aumento de profissionais na área dos cuidados?
Se se aumentar a qualidade dos cuidados serão menores as admissões hospitalares, aliviando as pressões no setor da saúde. Mas onde está o investimento na criação de um sistema de cuidados capaz, que possa realmente cumprir a sua função com qualidade?
Este breve quadro deveria ser suficiente para nos mobilizar enquanto sociedade, a começar a perceber o sistema e a desenvolver ações para o melhorar. Alterar o sistema, precisamente porque é complexo, implicará necessariamente uma ação colaborativa, envolvendo múltiplos parceiros, com diferentes saberes e recursos, numa verdadeira mudança de um sistema de sistemas.
Se já está a desenvolver ação para mudar o sistema e gostaria de trocar impressões com outros que o estão também a fazer, entre em contacto (raquelcfranco@deforafora.com).