Espelho meu, espelho meu, afinal quem sou eu?

Espelho meu, espelho meu, afinal quem sou eu?

Falta a palavra certa, que fica presa “na ponta da língua”. Perdem-se, aqui e ali, as chaves de casa, os óculos e a medicação. Confundem-se os nomes e rostos familiares. Esquecem-se consultas de rotina, a marcação do cabeleireiro, o horário de ir buscar o neto e outras pequenas tarefas e deveres do dia-a-dia. E, no entanto, perante a soma desses esquecimentos circunstanciados e a sua multiplicação, assistimos frequentemente a um exercício de negação e de normalização dos sintomas. Os sinais que não indicam nada senão “apenas” cansaço, “apenas” confusão, “apenas” um esquecimento, “apenas” distração. A busca de outras justificações para as alterações percebidas. A recusa em encarar o problema na sua dimensão clínica e, por fim, a procura de um outro nome para um diagnóstico que acaba por se impor: Alzheimer.

Uma travessia que se faz longa e atrasa o pedido de ajuda.

Alzheimer é a doença que condena ao esquecimento. Mas mais do que aqueles esquecimentos rotineiros que, dia a dia, vêm subtrair funcionalidade e autonomia, a doença de Alzheimer ataca a identidade e altera profundamente quem somos.

Na imparável marcha da doença, perde-se, pelo caminho, o fio condutor que nos define.

A reboque da incapacidade, perdem-se interesses e motivações, atividades, papéis, estatutos e funções que antes emolduravam a personalidade. O passado torna-se volátil e os acontecimentos, recentes ou antigos, amontoam-se desorganizados numa história pessoal que se confunde e transfigura.

Não raras vezes, aqueles que se amam, fazem-se, de repente, estranhos e até hostis. E numa inusitada inversão de papéis, os filhos e os netos tornam-se afinal os pais que ditam rotinas, receitas e regras tantas vezes incompreensíveis para o doente. Por outro lado, também os próprios espaços de vida podem-se tornar irreconhecíveis para o doente. E a casa, antes porto de abrigo, pode converter-se num lugar ameaçador.

Sem a âncora do passado e à margem do presente pela crescente dificuldade de apreender o contexto, perdem-se conexões importantes: consigo mesmo, com o meio e com os outros.

É neste caos das memórias desorganizadas e dos afetos misturados que se fragmenta a identidade. E do Eu em ruína, emerge a pergunta angustiada: Espelho meu, espelho meu, afinal quem sou eu?

Numa marcha contra o tempo que vem roubar toda uma existência, é então preciso…tempo.

Tempo para integrar as mudanças que se fazem drásticas. Tempo para aceitar o afastamento comunitário, para abdicar de uma vida social mais ativa, abandonar as atividades de lazer e outros projetos laborais e pessoais. Tempo para deixar cair os velhos papéis até então assumidos. Tempo para gerir as perdas. Tempo para acolher os cuidados daqueles que o rodeiam. Tempo para inventar novas dinâmicas e rotinas dentro de uma família também em mudança.

Tempo também para aqueles que adoecem com o doente e que se impõem como cuidadores para lá do espectro solitário e ensimesmado da doença. Também eles reclamam um tempo que não chega. Tempo para aprender a lidar com os sentimentos e comportamentos do doente. Tempo para aceitar as suas mudanças de personalidade. Tempo para assumir as suas próprias emoções gerir sentimentos de angústia, impotência, medo, pena, sobrecarga, pessimismo e culpa.

Ninguém morreu, mas este é já um tempo de luto. Primeiro o confronto com a evolução fatal da doença. Depois a antevisão de todas as perdas e a perspetiva de uma vida a prazo, que se esvazia a cada dia. O luto da imagem e da pessoa de outrora. E por fim, o luto da própria relação e a aceitação do distanciamento afetivo que, por fim, se instala quando o doente deixa de reconhecer os seus familiares e se fecha incomunicável sobre si mesmo.

Há uma saudade que se faz em presença e que começa com um longo adeus. Pelo caminho perde-se uma mãe/pai, um cônjuge, uma avó/avô e fica apenas a lembrança do que aquela pessoa foi e da sua história na história dos outros. E, ainda assim, a vontade de agarrar aquela pessoa doente, na sua presença-ausente, ensombrada pelo medo de uma morte há muito anunciada.

São estas as lutas do luto. Longo e desgastante na sua caminhada antecipatória, o luto é um processo penoso, que mortifica aqueles que assistem de fora, mas ao lado do doente. Não obstante a violência da experiência, este processo é normal e adaptativo. Permite integrar a realidade de uma perda iminente e preparar a despedida; finalizar situações incompletas; gerir emoções; garantir que nada fica por dizer ou fazer.

É a oportunidade para prestar um contributo inequívoco no alívio do sofrimento da pessoa doente e de exercer a graça de amar acima de qualquer desafio (Valter Hugo Mãe, A minha Mãe é a Minha Filha). É a derradeira oportunidade de homenagear. Ser memória e porta-estandarte da sua história pessoal. Ser espelho e fazer refletir, para lá da doença, a imagem daquele que não sucumbirá ao esquecimento.