A urgência de investimento nos cuidados de longa duração em Portugal é notória. Segundo o Relatório de 2021 sobre os Cuidados de Longa Duração, são apontados alguns aspetos centrais da realidade destes serviços a nível nacional de onde sobressai, desde logo, a previsão de aumento da população com necessidade de cuidados de longa duração (CLD) em virtude do contínuo envelhecimento demográfico e, como tal, um aumento da despesa pública. A Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI) é apontada como entidade de referência, mas com desafios em matéria de acesso e acessibilidade financeira. A prestação de CLD está consubstanciada no modelo organizativo da RNCC – baseado em objetivos e métodos unificados – e que introduziu uma importante reforma na prestação de serviços de CLD por parte do sistema nacional de saúde e do sistema de segurança social, visando promover práticas de qualidade.
O relatório destaca ainda que em 2019, a despesa pública com CLD em se Portugal situou em 0,4% do PIB, valor significativamente inferior à média da UE-27 (1,7%). Ao longo do tempo, Portugal foi identificado como um dos 27 Estados-Membros da UE com a maior quota de financiamento direto do próprio bolso para CLD. Portugal é ainda apontado como um dos Estados-Membros da UE-27 com as taxas mais elevadas de cuidados prestados por cuidadores informais. A situação dos cuidadores informais foi negligenciada até muito recentemente, mas a aprovação do estatuto do cuidador informal em 2022 traz uma esperança de melhoria da situação. Garantir que a implementação do estatuto apoie efetivamente os cuidadores informais é, segundo o mesmo relatório, um grande desafio a ser enfrentado, juntamente com a promoção de maior acesso e acessibilidade aos cuidados de longa duração de âmbito mais formal. Do ponto de vista da força de trabalho formal de cuidados de longa duração, esta é estimada em cerca de 17.600. O número de cuidadores informais é estimado em aproximadamente 1,1 milhão, sendo que as mulheres representam a maioria dos trabalhadores informais e, principalmente, dos cuidados formais, a maioria dos quais com baixo nível de escolaridade.
O maior papel das mulheres nos cuidados, a vulnerabilidade das condições de trabalho neste setor, o aumento da procura e a escassez das respostas, não são desafios apenas para Portugal, mas para a Europa. Estas são também algumas das razões que estiveram na base da apresentação, em 2022, por parte da Comissão Europeia, da Estratégia Europeia de Prestação de Cuidados.
Os antecedentes da Estratégia Europeia de Prestação de Cuidados
Procurando enquadrar a Estratégia precisamos de recuar ao Pilar Europeu dos Direitos Sociais. O Pilar, proclamado em 2017 (pelo Parlamento, o Conselho e a Comissão), é o quadro de orientação para a construção de uma Europa social forte, justa, inclusiva e plena de oportunidades no século XXI. Dos 20 princípios que compõem o Pilar há um específico dos cuidados de longa duração - o princípio 18 - que refere que todas as pessoas têm direito a cuidados de longa duração de qualidade e a preços comportáveis, em especial serviços de cuidados ao domicílio e serviços de proximidade. Este quadro orientador que é o Pilar, ganhou forma em 2021 quando a Comissão apresentou o Plano de Ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais. Segundo a Comissão o Plano de ação transforma os princípios em ações concretas em benefício dos cidadãos. Propõe ainda metas abrangentes da UE a alcançar até 2030 [1]. Diz ainda que a concretização do Pilar é uma responsabilidade partilhada das instituições da UE, das autoridades nacionais, regionais e locais, dos parceiros sociais e da sociedade civil. O compromisso com o cumprimento do Pilar foi posteriormente reforçado na Cimeira Social que decorreu em Maio, no Porto, em 2021.
No Plano de ação é possível ler o seguinte: “Os sistemas de saúde e de cuidados de longa duração têm estado sob pressão considerável durante a pandemia, o que veio juntar-se aos desafios já existentes, de que são exemplo o aumento dos tempos de espera por cuidados de saúde, a escassez estrutural de pessoal e o aumento das desigualdades no domínio da saúde”. Refere ainda que “a resiliência dos cuidados de longa duração está também a ser posta à prova. Prevê-se que o envelhecimento da sociedade motive um aumento da procura de serviços de cuidados, ao mesmo tempo que a falta de normas de qualidade e as lacunas no acesso a serviços de qualidade, designadamente nas zonas rurais, são motivo de grande preocupação em muitos Estados-Membros". O documento refere que face a estes desafios a Comissão irá: Propor, em 2022, uma iniciativa sobre cuidados de longa duração, a fim de estabelecer um quadro para reformas políticas destinadas a orientar o desenvolvimento de cuidados de longa duração sustentáveis que garantam um melhor acesso a serviços de qualidade para as pessoas necessitadas.
No seu discurso sobre o Estado da União em 2021, Ursula von der Leyen refere que “decidimos propor uma nova estratégia europeia para a prestação de cuidados. Para que todos os homens e todas as mulheres possam beneficiar dos melhores cuidados possíveis e alcancem um bom equilíbrio de vida.”
A Estratégia Europeia de Prestação de Cuidados
A Estratégia Europeia de Prestação de Cuidados vem assim a ser apresentada em setembro de 2022 e tem como objetivo assegurar serviços de prestação de cuidados de qualidade, acessíveis e a preços comportáveis em toda a União Europeia e melhorar a situação tanto dos beneficiários de cuidados como das pessoas que lhes prestam cuidados, a título profissional ou informal. A estratégia é acompanhada de duas recomendações dirigidas aos Estados-Membros: uma sobre a revisão das metas de Barcelona em matéria de educação e acolhimento na primeira infância; e outra – que é a que nos traz aqui hoje - sobre o acesso a cuidados de longa duração de elevada qualidade a preços comportáveis. Ambas apresentam quadros/estruturas políticas para reformas e investimentos a nível nacional, regional e local. Ambas cobrem as questões da adequação, disponibilidade e qualidade de cuidados, bem como as condições de trabalho dos cuidadores.
No caso da proposta de recomendação sobre o acesso a cuidados de longa duração esta visa melhorar o acesso a cuidados de longa duração de alta qualidade a preços acessíveis para todas as pessoas que precisam deles; diz respeito a todas as pessoas que necessitam de cuidados de longa duração e aos cuidadores formais e informais e aplica-se a cuidados de longa duração prestados em todos os contextos de cuidados.
Em particular, esta proposta de recomendação:
- incentiva os Estados-Membros a reforçar a proteção social para os cuidados de longa duração e a melhorar a adequação, disponibilidade e acessibilidade dos serviços de cuidados de longa duração;
- apresenta um conjunto de princípios de qualidade e orientações de garantia de qualidade, com base no trabalho anterior do Comité de Proteção Social nesta área;
- apela à melhoria das condições de trabalho e das oportunidades de qualificação e requalificação no setor dos cuidados, destacando ao mesmo tempo o contributo significativo dos cuidadores informais e a sua necessidade de apoio;
- estabelece vários princípios de boa governança política e financiamento sustentável.
O cuidado diz respeito a todas as pessoas. Todos, em determinado momento da vida (e mesmo em vários momentos), irá cuidar ou receber cuidados. Sabemos que as pessoas vulneráveis à pobreza comportam maiores dificuldades no acesso aos serviços e, em variados momentos, o ato de cuidar origina também situações de pobreza. Sabemos também que o setor dos cuidados formais lida com situações de precariedade e baixos salários, o que torna o setor pouco atrativo e pouco resiliente. É esperado, segundo a Recomendação, que os Estados Membros nomeiem um coordenador nacional de cuidados continuados e estabeleçam um plano de ação nacional com medidas específicas de implementação da Recomendação. Este foi o mote para a EAPN Portugal promover em 2023 dois webinares dedicados à temática. Um que permitiu conhecer o estado da situação dos CLD em Portugal e outro dedicado à força de trabalho adstrita aos serviços que prestam estes cuidados.
As recomendações destacadas pela EAPN
Do conjunto de recomendações destacamos a urgência da prestação de cuidados ser uma prioridade na agenda política nacional. É necessário investir na definição de medidas estruturais de longo prazo, preventivas (preparação do envelhecimento e da reforma) e de reabilitação. O plano de ação nacional em matéria de cuidados de longa duração deve ser integrado, ou seja, deve ser capaz de mobilizar diferentes áreas políticas para além da área social e de saúde. É fundamental que este plano seja acompanhado de um plano financeiro sustentável, mobilizando para o efeito os fundos estruturais e o orçamento nacional. Um dos aspetos muito salientados em ambos os webinares prende-se com a mudança de mentalidade acerca do envelhecimento e das próprias pessoas idosas. No segundo encontro foi mesmo salientada a necessidade de se promover uma educação para o envelhecimento, para a igualdade de género e de defesa dos direitos humanos desde cedo nas escolas. Relacionada com esta valorização do envelhecimento e das pessoas mais idosas está a importância da participação. As pessoas precisam de estar no centro dos cuidados e a abordagem centrada na pessoa é um dos princípios relevantes na qualidade dos serviços de prestação de cuidados. Centrar na pessoa implica igualmente estabelecer espaços de auscultação e participação das pessoas beneficiárias dos serviços e investir no seu empoderamento.
Na melhoria dos serviços, as pessoas que cuidam (formais e informais) não foram esquecidas. A formação das equipas e o investimento na aprendizagem ao longo da vida precisam de ser efetivadas. É importante apostar em planos de gestão de recursos humanos e na valorização das carreiras destes profissionais. Do ponto de vista dos cuidadores informais, a formação é central, mas apesar da aprovação do Estatuto do Cuidador Informal, ainda permanecem medidas por executar o que remete para um plano secundário ao nível nacional a situação destas pessoas. A recomendações destacam ainda que a situação dos cuidadores informais é particularmente difícil no que se refere ao acesso aos cuidados de longa duração. Por um lado, os critérios existentes para acesso a estes cuidados podem estar a deixar de fora pessoas que precisam destes cuidados, mas que não cumprem os critérios e, por outro lado, os cuidados de longa duração são incomportáveis em termos de preço para os cuidadores informais.
O cenário dos cuidados de longa duração em Portugal ainda está muito longe de ser o ideal e de responder às reais necessidades das pessoas. Se ao longo da vida qualquer um de nós poderá cuidar ou precisar de receber cuidados, este cenário é preocupante e com impactos sérios na vida das pessoas que cuidam e são cuidadas. O empobrecimento das pessoas é uma das consequências desta carência de respostas na área dos cuidados e uma consequência com sérios impactos sociais, económicos e humanos.
[1] pelo menos 78 % da população entre os 20 e os 64 anos deverão estar empregadas até 2030; pelo menos 60 % de todos os adultos devem participar anualmente em ações de formação até 2030; uma redução de, pelo menos, 15 milhões do número de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social