Governança: emoção que tolda a razão

Governança: emoção que tolda a razão

Um artigo sobre governança associativa não é algo fácil de escrever. Há que admitir que sendo o assunto tão delicado é quase impossível abordá-lo sem ferir suscetibilidades. Peço desde já desculpa por isso. As associações estão cheias de pessoas que fundaram organizações, fizeram o melhor que puderam, e avançaram ao longo do tempo, com um crescimento orgânico. O problema é que no meio dessa boa vontade, as intenções podem até ser nobres, mas ficam as más práticas, que vão escalando e tendo maior complexidade, há medida que as organizações crescem e se desenvolvem.

Os fundadores

Começando por uma das questões mais centrais, temos o complexo de “fundador salvador”. Embora as regras de boa governança indiquem que os mandatos devem ser limitados no tempo, muitas organizações continuam com as mesmas direções por 20, 30 anos, sem qualquer rotatividade democrática. Isto acontece por muitas razões, mas muitas vezes resulta de uma incapacidade emocional de largar esse posto diretivo, e da não reflexão nos processos de sucessão e o não encorajamento de pessoas para prepararem para esse papel no futuro. Uma das questões mais importantes também neste processo, é não perceberem que os fundadores podem e devem ter um papel importante nas organizações que criaram, mas não deveriam eternizar-se nas funções de direção. Há alternativas virtuosas, como fazer parte de um conselho estratégico ou científico e acordar que sempre será incluído na auscultação sobre questões centrais da associação.

Os fundadores sentem uma ligação emocional, um sentido de pertença, e até algum sentido de posse pela organização que criaram. Como um bebé que criam a partir do primeiro sopro, alguns nunca conseguem cortar o cordão umbilical. Criam com a associação uma relação de co-dependência, que usam para sentido de identidade, apoio emocional e validação. Por sua vez, a missão da organização torna-se de tal modo central na sua vida que deixam de ter uma vida fora dela. Estes fundadores seguem a organização até ao limite, inclusive endividando-se por ela. Estão muitas vezes exaustos, desgastados e em burnout. A prioridade absoluta na sua vida, é a associação, em detrimento do lazer, dos amigos, da família e da sua própria felicidade.

Conflitos de interesse

Com a governação emotiva, muitas vezes vêm também decisões pouco fundamentadas. As questões éticas são ignoradas. Multiplicam-se as decisões de envolver familiares em cargos organizativos, sem o devido processo e transparência, às vezes até sem as competências técnicas requeridas. Isto leva a perdas de eficiência, eficácia e até situações muito desagradáveis em contexto organizacional, com conflitos gravosos e funcionários que se demitem por se sentirem injustiçados.

Quando não tem consequências imediatas, há ainda outras situações sérias que acabam por aparecer. A complexidade de gerir familiares, em especial pessoas do núcleo familiar direto (marido/ mulher, filho/a) é de tal forma, que poucas organizações não experienciam os malefícios da mesma. Manter totalmente separado o contexto familiar do profissional é demasiado exigente para a maioria das pessoas, contaminando ambos os contextos. Aliando a isso a hierarquia, é uma espécie de caldeirão que vai fervendo até que verte. Ainda mais, porque há um membro da família que terá responsabilidades em avaliar o desempenho do outro e em dar feedback e fazer críticas construtivas, o que muitas vezes mina a relação familiar. Voltando ao processo de seleção e recrutamento, é quase impossível alegar publicamente de que um membro da Direção de uma Associação que nomeia um seu familiar para o cargo está a fazê-lo porque é a única pessoa no mundo com essa competência. Será?

Claro que podem dizer-me que as funções foram distribuídas logo que a organização foi fundada. Realmente, essa é uma situação diferente. Mas tal como falamos antes da eternização, será que essa situação não poderia ter evoluído para uma solução melhor para todos? Há medida que a organização cresce deveria ter introduzido processos de transição, de funções executivas para não executivas e posteriormente para funções de aconselhamento. Ou se as funções executivas querem ser mantidas, garantir que as lideranças são renovadas e que há eleições democráticas. Acima de tudo garantir que os processos de decisão interna eliminam os conflitos de interesse, e as pessoas se recusam a decidir sobre situações em que têm conflito pessoal. Isso inclui também a contratualização de serviços de fornecedores externos.

A raiz de todos os males

Como empresa de consultoria internacional a Stone Soup Consulting recebe muitos pedidos de associações para ajudar com áreas que precisam de apoio, sendo as mais frequentes a angariação de fundos e a estratégia/ planeamento e avaliação. Chegam-nos pedidos concretos de todas as áreas. Às vezes, é a fragilidade da sua sustentabilidade financeira, com o desespero e incerteza que isso traz. Às vezes, é a incapacidade de avançar com um processo de planeamento estratégico, ficando num redemoinho operacional que tudo consome nas urgências do dia a dia. Às vezes é a avaliação de projetos ou a avaliação de impacto, que nunca foi feita com qualidade que permita tomar decisões para o futuro da organização.

Seja qual for o motivo que gera o interesse, o diagnóstico organizacional muitas vezes mostra outras causas-raiz. Por vezes, a origem está mesmo em processos de governança. Lideranças ditatoriais e tóxicas, decisões tomadas em conflito de interesse, incapacidade de valorizar as capacidades técnicas de quem está na organização, facilitismo e falta de ética. Ora, com uma governança deste tipo é impossível planear, decidir, manter o foco no impacto, investir nas pessoas e no seu desenvolvimento pessoal e profissional. Assim se descobrem nexos causais inesperados como um gap de financiamento diretamente ligado à toxicidade da liderança.

A luz ao fundo do túnel

Todos os redemoinhos parecem avassaladores, até nos lembrarmos que há uma luz ao fundo do túnel. Com calma, respirando fundo, podemos deixar de nos afogar e mergulhar na direção da luz. Podemos aproveitar a metáfora e fazer o mesmo no contexto organizativo. Não há nada que não possa ser solucionado. Só temos de conseguir embarcar no processo de mudança, por mais difícil que este seja.

Para aqueles que não estão num papel de decisão, esta afirmação parece uma utopia. Mas até para estes casos há soluções. Existem meios para denunciar más práticas, questões de corrupção, maus-tratos de funcionários, ou má gestão de fundos públicos. Existem formas de mobilizar pessoas para levar para a frente a missão nobres das organizações e afastar essas lideranças tóxicas. Existem pessoas boas, e tecnicamente competentes, prontas a assumir lideranças. Existem pessoas com boas ideias sobre como ultrapassar dilemas e conflitos. Existem pessoas que podem ajudar em processos de transição, e a avançar eticamente, um passo de cada vez. Existem boas práticas para implementar.

Mas é importante notar que nem tudo vem de um fundo de maldade. Os comportamentos humanos são complexos e tratá-los de forma simplificada pode levar à implosão de organizações meritórias. A causa pode continuar forte e enraizada, mas muitas vezes a razão está toldada pela emoção. Com esse nevoeiro, pode-se estar a contribuir para o mal da organização, tão amada e a que se dedicou toda uma vida. Cabe-nos a nós perceber como dissipar esse nevoeiro.

Cláudia Pedra

Managing Partner, Stone Soup Consulting