O artigo número 65º da Constituição da República Portuguesa estabelece que "Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Nos números seguintes desse artigo apresentam-se as responsabilidades do Estado para o assegurar.
A pergunta que se impõe é: estamos a dar cumprimento a este Direito?
A realidade mostra-nos que não. A crise habitacional em Portugal não é recente, no entanto, temos assistido a um agravamento acentuado, vivenciando múltiplas crises que resultam num aumento do custo de vida (aumento das despesas com alimentação, energia, habitação), não se verificando um acompanhamento dos rendimentos dos portugueses.
Mais do que um direito social, o acesso a uma habitação digna e adequada é um fator transformador, com implicações ao nível da saúde e autoestima, e por isso indissociável do nosso bem-estar físico e emocional. Apesar da sua importância central no bem-estar individual, são vários os desafios e vulnerabilidades que limitam uma concretização plena do Direito à Habitação em Portugal.
A EAPN Portugal – Rede Europeia Anti Pobreza – há muito que vem manifestando a sua preocupação com as dificuldades de acesso a habitação por parte dos grupos mais vulneráveis – uma das múltiplas dimensões da pobreza e, talvez, aquela cuja resolução poderá constituir a base para atenuar todas as outras.
Que realidade temos atualmente?
- Os dados (do ICOR – Inquérito às Condições de Vida e Rendimento) sobre a Habitação referentes a 2021 dizem-nos que 18,8% das famílias em situação de pobreza viviam em situação de sobrelotação, sendo esta taxa de 8,7% na restante população. Nesse mesmo ano, 24% da população em risco de pobreza encontrava-se em sobrecarga das despesas em habitação, comparativamente a 1,8% para o resto da população. O custo com a habitação consome o rendimento das pessoas, deixando pouco para outras necessidades, como alimentação, energia, educação, saúde ou lazer.
- As questões de pobreza energética também são prementes. Os dados do Eurostat indicam que, em 2022, 9% da população da União Europeia não conseguia manter a sua casa adequadamente aquecida. Em Portugal, esta percentagem era de 17,5% (entre os sete países com as taxas mais elevadas).
- Desde 2015, os preços médios da habitação têm aumentado de forma muito significativa, acentuando desigualdades sociais e territoriais. De acordo com o Índice de Preços da Habitação, os valores relativos ao ano 2022 indicam que, na União Europeia, se registou uma subida de preços de 48.9% desde 2015, mas em Portugal esta subida foi de 90,2%. No que respeita ao arrendamento, nos últimos 10 anos a subida foi de 18% na União Europeia, mas a subida em Portugal foi de 28%.
- Contudo, é de notar que as dificuldades no acesso à habitação têm na sua base também fatores externos a esta área – como a precarização do emprego e a redução do rendimento disponível das famílias.
- A habitação social é de difícil acesso, pela sua insuficiência, o que dá origem a longas listas de espera, e com procedimentos administrativos que limitam ainda mais a acessibilidade. Além disso, os bairros de habitação social têm frequentemente poucos recursos e são estigmatizados, contribuindo para a segregação das pessoas em situação de pobreza.
- Se a crise no acesso à habitação está a afetar cada vez mais pessoas, também é verdade que há grupos mais vulneráveis e que sofrem mais impacto:
A falta de habitação a preços acessíveis pode afetar especialmente as mulheres - quando o arrendamento por conta própria está totalmente fora de alcance, as pessoas tornam-se dependentes daqueles com quem coabitam, incluindo em situações de violência (e sabemos que as mulheres continuam a ser um grupo mais afetado do que os homens por baixos rendimentos no trabalho e nas reformas, e maior dependência de outros familiares);
- As pessoas com deficiência enfrentam ainda barreiras únicas no acesso à habitação;
- São conhecidas as condições indignas em que vivem muitos trabalhadores imigrantes;
- Não conseguimos ainda providenciar uma resposta para a população em situação de sem abrigo;
- As comunidades ciganas em Portugal vivem muitas delas em situações indignas (bairros de barracas proliferam pelo país sem que haja um conhecimento concreto de quantas pessoas neles habitam;
- E pensemos também nos jovens que deixam os cuidados estatais, as instituições de acolhimento, uma vez que perdem, em larga medida, os apoios que tiveram até então.
Já com os confinamentos durante a pandemia de COVID-19, tínhamos tomado mais consciência das desigualdades existentes ao nível das condições de segurança, de conforto e de privacidade das habitações. E as dificuldades de acesso a habitação não afetam apenas as famílias mais vulneráveis. Atingem também, cada vez mais, famílias de médios rendimentos, não só por via do aumento das rendas, mas também das taxas de juro associadas aos créditos bancários.
Muitas dificuldades e desafios se apresentam, mas destaco aqui os que considero essenciais:
- Se por um lado, este é um problema urgente, importa lembrar que foi sucessivamente “adiado” pelos diversos governos e consequentemente o problema tendeu a agravar-se. Este fenómeno é também europeu e deriva em grande parte do turismo, do investimento estrangeiro na área imobiliária, tanto para viver como para investir, e dos grandes fundos imobiliários.
- Em muitos casos, os baixos rendimentos das famílias são um dos fatores que mais contribui para estas dificuldades de acesso à habitação, bem como a insegurança e precariedade laboral;
- A ausência de uma entidade reguladora do mercado imobiliário, bem como a falta de intervenção e participação do Estado neste mercado são dois aspetos críticos;
- Importa refletir também que uma parte fundamental dos serviços e mecanismos de apoio nas áreas do apoio à habitação e do combate à pobreza energética são disponibilizados por via digital e usando uma linguagem, por vezes, indecifrável. É importante garantir a acessibilidade destas informações a todos os destinatários, investindo também num aumento da literacia digital de todos os envolvidos e/ou criando mecanismos alternativos para melhorar a acessibilidade a estas informações quando esta capacitação não é possível.
- Os apoios que existem por via dos organismos estatais (IHRU) e agora mais recentemente por via do Plano de Recuperação e Resiliência não estão adaptados à realidade nacional e às diferenças regionais: muitos dos requisitos que são pedidos em medidas de apoio específicas não são possíveis de concretizar pelo cidadão comum. Se muitas vezes nem as autarquias locais têm pessoal técnico capaz e em número suficiente para aceder a estes instrumentos, que fará um cidadão individual.
Pensemos também nas consequências que estas limitações no acesso à habitação implicam na vida das pessoas. Os seus múltiplos impactos.
- Já referi a existência de pessoas que estão dependentes daqueles com quem coabitam, e que não conseguem sair de situações de conflito ou mesmo de violência.
- As pessoas são muitas vezes obrigadas a aceitar condições de vida indignas, em casas com condições graves de insalubridade. Esta situação é agravada pelo facto de que as pessoas em situação de pobreza não têm dinheiro disponível para investir em reparações ou manutenção. Muitas vivem em casas arrendadas, sem que o senhorio garanta essa melhoria de condições.
- Além disso, os custos elevados levam a que as pessoas sejam obrigadas a partilhar pequenos espaços com várias outras pessoas, o que pode conduzir a tensão nas relações e contribuir para o stress, a ansiedade e a depressão (temos as conhecidas situações de imigrantes; mas também filhos que regressam à casa dos pais, por exemplo, por vezes com os seus cônjuges e filhos também).
- Por outro lado, aqueles que procuram fazer face aos custos, vivendo com outros são frequentemente penalizados pelo sistema de proteção social (podendo perder o direito a certos apoios sociais).
- Pensemos ainda no caso dos jovens que são obrigados a adiar os seus planos de se autonomizarem dos seus pais e constituírem família.
- Importa também referir que, no limite, há pessoas que, por vários motivos, acabam por resvalar para a situação de sem abrigo. É difícil cozinhar, aceder ao emprego, a proteção social ou à educação, manter condições de saúde e de higiene se não se tiver um local seguro para viver e um local de residência para indicar. A habitação acaba por constituir um pré-requisito para aceder a outros direitos.
- Não podemos esquecer também a situação de vulnerabilidade em que vivem algumas Comunidades Ciganas, que se mantêm em acampamentos ou em bairros degradados sem energia, água ou saneamento. Estas pessoas vivem sem condições dignas e são vítimas de discriminação e exclusão. Esta situação tem impactos significativos na vida das crianças, nomeadamente, no que se refere à sua inserção escolar e, na vida dos adultos, no que se refere à sua inclusão laboral. É fundamental que estas comunidades sejam consideradas no âmbito destas medidas.
Ou seja, a habitação a preços incomportáveis é uma questão de grande preocupação, não só em Portugal, mas por toda a União Europeia. Conduz a situações de insegurança habitacional, tensão financeira, habitação inadequada e, no limite, ao aumento do número de pessoas em situação de sem-abrigo.
Estes problemas afetam a saúde e o bem-estar das pessoas, traduzem-se em condições de vida e oportunidades desiguais e resultam em custos de saúde e sociais.
Pe. Jardim Moreira, EAPN Portugal
Intervenção proferida na PATORREB 2023– 7ª conferência sobre patologia e reabilitação de edifícios (26.09.2023) – Parte 1
(A Parte 2 está publicada aqui)