Dado o exposto anteriormente (veja a parte 1 deste artigo), a EAPN Portugal entende que:
- Face a este quadro, é fundamental garantir que a população tenha acesso a créditos comportáveis com o seu rendimento. É necessário evitar despejos e incumprimentos bancários, assegurando estabilidade às famílias que ficaram mais vulneráveis por via das crises (epidémica e inflacionária) e são obrigadas a pagar taxas de juros que não são compatíveis com os seus rendimentos.
- Da mesma forma, é necessário estar atento à questão das rendas em atraso evitando situações extremas em que os tribunais decretam despejos e desalojamento de famílias.
- É necessário aumentar a disponibilização de habitação social e arrendamento acessível e neste aspeto poderíamos olhar para outros exemplos europeus. Em algumas cidades alemãs, como Berlim e Hamburgo, são feitos acordos de cooperação entre municípios e promotores, fixando-se anualmente os objetivos de construção e estando destinados 30 % dos novos edifícios a arrendamento para famílias de baixos e médios rendimentos. Experiências semelhantes têm sido desenvolvidas na Áustria, Holanda, Reino Unido e Suécia.
- No âmbito do arrendamento, poderá ser necessário que o Estado e legislação desenvolvida desempenhem um papel de mediador na relação entre senhorios e inquilinos. Pensemos por exemplo nos apoios que são proporcionados para melhoria das condições de eficiência energética dos edifícios – os inquilinos não podem candidatar-se, pois a candidatura tem de ser feita pelo titular da propriedade e, por seu lado, os senhorios poderão não estar interessados em fazer este investimento. Ou em alguns casos, fazendo-o, acabam por aumentar os preços das rendas de forma incomportável para os inquilinos (com base num investimento que nem foi feito pelos próprios, mas sim financiado pelo Estado).
- É necessário, logo à partida, que as verbas do Plano de Recuperação e Resiliência destinadas à área da habitação sejam efetivamente e totalmente aplicadas, de forma justa e igualitária, por todo o território nacional, em função das necessidades de cada município, e não em função da dimensão, capacidade e recursos técnicos para apresentação de candidaturas ou influência política das autarquias.
- É importante promover ações de requalificação (quer de natureza funcional, quer no âmbito da promoção de uma maior eficiência energética dos edifícios), mas o investimento não pode focar-se somente na reabilitação, é necessária construção para arrendamento acessível (por contraponto à construção para o mercado imobiliário a que temos assistido recentemente, que se apresenta a preços muito elevados). Quando falamos de reabilitação, os beneficiários serão, na sua maioria, pessoas que já têm casa, mas é fundamental dar resposta cabal àqueles que não têm casa de todo, e àqueles que estão obrigatoriamente deslocados por falta de acesso a habitação mais próxima dos locais onde trabalham ou estudam.
- Em Portugal, além dos programas previstos no PRR, o pacote Mais Habitação contempla outras respostas, mas as medidas necessitam sobretudo de urgência na sua aplicação e, certamente, de um significativo investimento financeiro. O problema da habitação em Portugal adquiriu proporções desmesuradas nos últimos anos e este pacote de medidas demorará algum tempo a ser aplicado, o que vai onerar os custos das famílias e sobretudo não resolverá de imediato algumas situações urgentes.
- Será fundamental o papel das autarquias e será preciso mobilizar os atores institucionais que podem fazer a ponte com os potenciais beneficiários de modo a fazer-lhes chegar a informação necessária sobre os seus direitos e os meios de que precisam para aceder aos mesmos. O envolvimento de municípios, juntas de freguesia, instituições de solidariedade social e organizações da sociedade civil deverá ser central no esclarecimento, referenciação e encaminhamento das pessoas que possam beneficiar das medidas.
- Não podemos esquecer o papel fulcral que terão as Estratégias Locais de Habitação. No entanto, teremos certamente um longo caminho a percorrer até que estes instrumentos estejam em plena aplicação por todo o território nacional. Além disso, importa que elas sejam baseadas num diagnóstico rigoroso e atempadamente atualizadas.
- Paralelamente, é essencial que haja uma articulação entre aquilo que é o planeamento do uso do solo e o planeamento da mobilidade. A vida das pessoas é composta por várias dimensões – a sua casa, o seu trabalho, a educação dos filhos, o apoio e cuidado a familiares, o acesso a serviços de saúde, culturais e outros. Mas quem mora nas nossas cidades atualmente? (alguns idosos? Os turistas? Residentes estrangeiros? A restante população está a perder a capacidade para tal a grande velocidade) Deve haver uma preocupação em proporcionar às pessoas condições que lhes permitam aceder aos diferentes serviços e desempenhar os diferentes papéis nas suas vidas de forma harmoniosa.
- Deve ser dada atenção aos espaços rurais e semirrurais, que têm os seus problemas específicos nesta área e não devem deixar de ser alvo de intervenção e legislação especifica. A habitação tende a ser mais barata fora das cidades, mas há falta de oportunidades de emprego e um acesso limitado aos serviços essenciais e serviços de transporte eficientes nas zonas rurais.
- É necessário aumentar o poder público sobre o mercado imobiliário. Os Estados não podem continuar a externalizar as suas responsabilidades para o mercado e devem garantir que as pessoas em situação de pobreza tenham acesso a habitação de qualidade e a preços acessíveis.
- A habitação deve ser tratada como um direito humano e não como um bem de consumo e todos os cidadãos devem ser capacitados e empoderados para conhecer os seus direitos legais. E, se por um lado os Estados devem assumir a responsabilidade de garantir o acesso à habitação para todos, por outro, os cidadãos e a sociedade civil devem ser incluídos de forma significativa neste processo. Em particular, a experiência das pessoas em situação de pobreza deve ser valorizada e integrada nas políticas de habitação. Falo de uma efetiva participação. As pessoas, as famílias devem ser ouvidas e as suas opiniões e dificuldades devem ser consideradas para melhoria das políticas públicas e dos serviços.
- Acresce a necessidade um maior e melhor acompanhamento dos casos ao longo do tempo. O acompanhamento social providenciado pelos serviços não pode ser espartilhado – providenciar alimentação, ou habitação, ou apoio financeiro – deve haver acompanhamento e apoio integrais e transversais às diversas dimensões da vida das pessoas (emprego, educação e formação ao longo da vida, saúde, etc.).
- É essencial que o Estado promova uma fiscalidade justa e que salvaguarde os interesses das pessoas, em particular das que se encontram em situações de maior vulnerabilidade, como forma de combater a desigualdade social em Portugal.
- Outro aspeto central é que as políticas - e estamos a falar de políticas estruturais - não podem ser pensadas e encaradas de forma sectorial. Para que possamos alcançar uma política de habitação eficaz e positiva para todos os cidadãos, esta tem de ser desenvolvida em articulação permanente e profícua com políticas económicas, políticas de proteção social, de emprego, de saúde, de educação, de mobilidade e de segurança. A solução para a habitação exige a opção por um novo modelo de sociedade.
Naturalmente, é indispensável a articulação com diversas estratégias que se encontram em desenvolvimento, mas destaco a ligação com a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, de modo que também a área da Habitação possa cumprir o seu papel e contribuir para o combate à pobreza em Portugal, um desígnio nacional.
- Acrescento ainda que é essencial a definição de um plano a médio e a longo prazo. As medidas de efeito imediato e temporário são importantes e necessárias neste momento, mas são remediativas e não resolvem os problemas na sua génese. Importa planear e decidir de forma que uma conjuntura como a que vivemos atualmente não se volte a repetir.
Em conclusão,
Importa, cada vez mais, defender o ser humano na sua integralidade – como ser antropológico biopsicossocial – uma vez que, para que todas pessoas possam ter uma vida plena, todas estas áreas se tocam e são interdependentes. O ser humano não pode ser pensado apenas em função das suas necessidades de ter um tecto sobre a sua cabeça e de alimentos para sobreviver. Tem de ter acesso a cuidados de saúde, acesso a educação, integração social… pois o ser humano vive em família e em comunidade, e floresce nessa interação. Mas, de facto, a existência de uma habitação digna é a base para uma vida plena, pois a casa é o centro de tudo. Da família, do aconchego, da segurança e da liberdade para fazer opções.
O Direito à Habitação nunca foi verdadeiramente considerado como tendo de ser garantido pelo Estado. Foi esquecido. Assistimos hoje a uma maior atenção a este tema e a discussão é importante, mas o fundamental será a aplicação efetiva de medidas para garantir que todas as pessoas tenham uma casa e que haja uma particular atenção àqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade. Estamos num momento particularmente importante por todos os investimentos do PRR e do Portugal 2030 e saibamos agora aproveitar. Desperdiçar esta oportunidade pode comprometer o futuro dos nossos jovens.
A EAPN Portugal está comprometida com este tema e por isso participa em vários eventos como o de hoje e procura produzir informação em torno do tema, sempre com particular enfoque na auscultação direta de pessoas em situação de pobreza. A auscultação das pessoas vulneráveis é fundamental para a construção de um processo que os visa diretamente. Consideramos que esta é uma condição fundamental para a prossecução – e sobretudo para o êxito – de qualquer política pública, nomeadamente na área da habitação. Fóruns como este que iremos assistir aqui hoje são fundamentais para formar opinião, aumentar o conhecimento e influenciar as políticas.
Pe. Jardim Moreira, EAPN Portugal
Intervenção proferida na PATORREB 2023– 7ª conferência sobre patologia e reabilitação de edifícios (26.09.2023) – Parte 2