O Voluntariado é inclusivo?

O Voluntariado é inclusivo?

O Voluntariado é a sublime expressão de solidariedade. É a manifestação de uma relação de reciprocidade que tem como propósito o bem comum. Oferecemos o nosso tempo e as nossas competências, esperando que tenha um impacto positivo no problema identificado na nossa comunidade ou no mundo. Em troca sentimos alegria, ao perceber o impacte da nossa ação. Quem faz Voluntariado é mais feliz, demonstrado por vários estudos académicos em várias geografias do mundo. Entre outras constatações, também se sabe que as pessoas voluntárias têm maior qualidade de vida e até maior esperança média de vida.

Se assim é, porque se continua a impedir que pessoas em situação de vulnerabilidade sejam voluntárias? Se o Voluntariado tem este potencial de contribuição para uma vida mais saudável a nível físico e psicológico, porque é bloqueado a quem mais poderia usufruir dele?

Conheço algumas respostas, pois já fui sua mensageira. Por exemplo, defendia que quem se encontra em situação de vulnerabilidade deve primeiro cuidar de si, para depois cuidar dos outros. Sentia-me muito segura neste argumento, claramente influenciada pela Pirâmide de Maslow.

Piramide de Maslow_fig1

Figura 1 - Pirâmide de Maslow criada por Abraham Maslow (1908-1970)

Em várias palestras apregoava: “Voluntariado não é terapia. Por isso não compreendo porque em entrevistas de Voluntariado aparecem tantos candidatos a referir que foram incentivados a exercer o Voluntariado pelos seus psiquiatras e psicólogos. Porque pode ser mais prejudicial para quem faz Voluntariado se não estiver bem de saúde, seja física ou mental e também colocar em risco os beneficiários da ação voluntária”.

O que me fez mudar de opinião? As evidências do trabalho no terreno. Quando há 20 anos implementava o projeto de saúde materno-infantil “A Casa das Mães”(1) em Timor-Leste com a Médicos do Mundo, a experiente enfermeira Fátima Mendes(2) (mais conhecida como Mamã Fátima) decidiu criar um programa de Voluntariado nas aldeias isoladas, de forma a mobilizar voluntários de mota a chamar uma ambulância quando as mulheres grávidas entravam em trabalho de parto (não havia acesso a telefones). A confiança e respeito que depositava nela foram superiores ao meu ceticismo. Os resultados “deitaram por terra” aquelas certezas. Porque neste caso, quem se voluntariava eram pessoas em situação de vulnerabilidade.

Por isso na Pista Mágica criamos a Metodologia de Voluntariado Apoiado (MVA). Esta expressão foi inspirada na existente “Emprego Apoiado”, de forma a tornar mais claro o propósito desta metodologia, que é o exercício de Voluntariado por pessoas em situação de vulnerabilidade com apoio constante até à autonomia (quando possível). Tem 4 fases:

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Figura 2 - Fases da Metodologia de Voluntariado Apoiado (MVA), Pista Mágica - Associação

No Voluntariado apoiado existe um acompanhamento personalizado da pessoa voluntária, tendo em consideração os desafios que enfrenta devido à sua situação de vulnerabilidade e de forma a poder atingir todo o seu potencial. Cada pessoa tem um conjunto único de talentos que pode colocar ao serviço da comunidade. Nesta metodologia criam-se programas de Voluntariado à medida do grupo que estamos a servir que tem o mesmo tipo de vulnerabilidade.

De uma forma espontânea várias organizações incluem pessoas em situação de vulnerabilidade como voluntárias nos seus programas de voluntariado. Quando pessoas muito motivadas e com apetências para o efeito, decidem fazer esse esforço extra. Fomos à procura desses exemplos, que muito nos inspiraram e nos deram pistas. Não encontramos, porém, um método, tanto no nosso país, como lá fora. A questão que levantamos foi: “E se criássemos uma metodologia, a testássemos e lhe déssemos escala, de forma a ter um impacte alargado?”.

A metodologia foi e está a ser testada por grupos de beneficiários através de 3 projetos, a evoluir para 4:

  1. com jovens em risco em Gondomar e no Porto (2022),
  2. com pessoas com deficiência leve a moderada em Vila Nova de Gaia (2022-23),
  3. com pessoas com depressão e ansiedade em fase de implementação em Valongo (em funcionamento) e
  4. com seniores brevemente.

Os resultados já em fase de prototipagem foram muito bons, o que nos permitiu alargar a mais públicos e escalar.

A MVA é uma matriz de ação consolidada, porém capaz de ser ajustada a cada grupo de beneficiários. Isso foi possível porque com cada novo projeto percebemos as especificidades de cada grupo. Com jovens em risco são umas, com seniores serão outras.

Nas iniciativas de inovação social aplicamos a máxima de pensar “fora da caixa”, ao ir para lá das narrativas que se “calcificam” nas nossas mentes, que neste caso é a Pirâmide de Maslow. A nossa equipa teve um papel ativo e criativo na co-construção e adaptação dos elementos da metodologia ao longo do processo da testagem e consolidação da mesma.

Mas a mudança não é feita apenas por nós! Conta com o envolvimento de muitos agentes que inclui: os financiadores e investidores sociais, as organizações acolhedoras de voluntariado, os parceiros que identificam e apoiam os grupos de beneficiários, as pessoas voluntárias.

O Voluntariado é mesmo isso: um esforço concertado de muitos agentes de mudança que têm o mesmo propósito: um mundo melhor onde toda a gente participa!

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(1) Este projeto visava diminuir a elevada morbilidade materno-infantil em Timor-Leste porque as grávidas de risco não eram assistidas durante o parto.

(2) Esta é uma forma singela de homenagear Fátima Mendes, que já partiu. Com saudade recordo toda a sua entrega nas Missões que abraçou, sejam pessoais, sejam na ajuda humanitária – em Portugal e noutros países, como Angola onde era enfermeira emergencista no tempo da guerra colonial e Timor-Leste (em 2000 e em 2004/5).

Sugestões de leitura:

Fernandes, S., Azevedo, A. L., & Freitas, I. (2021). Guia para um Voluntariado mais Inclusivo. Gondomar: Pista Mágica – Associação. Disponível em https://www.pista-magica.pt/wp-content/uploads/2023/04/Guia-para-um-Voluntariado-Mais-Inclusivo-VMI.pdf

Fernandes, S., (2022, novembro). O Voluntariado e a inclusão de quem o exerce. Economia Social. Leitura & Debates, n.º19. Consultado em 7 nov. 2023. Disponível em http://www.revista-es.info/fernandes_19.html

Freitas, I. (Coord.) (2022). Histórias de um Voluntariado mais inclusivo. Booklet. Disponível em https://drive.google.com/file/d/1h7kJUEVpA1pGUQ7ovsJrrh91cqQYQHcd/view

Gonçalves, A., Dias, C., & Freitas, I. (Coord.) (2023). Guia Metodologia de Voluntariado apoiado. As pessoas com deficiência como agentes de mudança. Disponível em https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1xFmRCKTkx-C8FJOk3-04cJyewsY-N6tm